isso é muito alto — Segundo andar #06

laryssa andrade
2 min readApr 1, 2023

a vida é um puro ruído entre dois silêncios insondáveis.

quando li Isabel Allende falar sobre a sua filha, Paula, e o que a existência de todos nós significava, tomei em meus braços esse ruído que ela põe entre dois silêncios.

Fotografia autoral, 2023.

estranho pensar que eu não sabia o que era a despedida. eu lembrava do soco, do nó, do aroma do fim, só que tudo era antigo demais. eu só tinha treze anos quando vi a morte pela primeira vez. o suficiente para me marcar de várias formas.

lembro que o gesto seguinte de quando eu soube da partida da minha avó materna, foi pegar uma fotografia dela que eu tinha guardada. corri para o meu quarto, ainda ser ar. abri uma sacola cor-de-rosa, pois eu sabia que nela tinham retratos. então achei. na imagem, ela estava sentada numa cadeira de balanço, cujos fios eram na cor vinho. lembro que essa foto foi feita no dia da minha primeira eucaristia — dia importante para a avó católica. ela usava um vestido preto, sem alça, com um blazer azul-cor-do-céu por cima, fechado ao meio por um pequeno botão branco. somente essa foto era capaz de me salvar um pouco mais naquele momento. a realidade não bastava [eu queria o céu,

tão azul quanto

aquele blazer,

e o cheiro dela outra vez]. me deram as nuvens. a despedida. mordi o algodão que flutuei e ele tinha gosto de alguma coisa. o quê?. eu tentei entender. eu não sei. alguma coisa me respondeu.

vinte de março de dois mil e vinte e três. dez da noite, em ponto.

vinte e um de março de dois mil e vinte e três. dez e quinze da manhã.

vinte e quatro de março de dois mil e vinte e três. onze e quatorze da manhã.

aos vinte e seis anos, ainda lembro da tarde de junho daquele ano. parece que me encontro no alto de um prédio pronta a sentir o frio da barriga outra vez. agora, no hospital, o meu tio também está grave. me sinto suspensa. escrevo para não esquecer.

vinte e sete de março de dois mil e vinte e três. dez e quarenta e um da manhã.

você me deixou.

“segundo andar” é uma série sobre as minhas vivências pessoais — com familiares e outras pessoas — no hospital, desde 2019, a partir do início do tratamento de hemodiálise de um dos nossos. esse texto foi sendo escrito na última semana, durante internações, cirurgias e UTI do meu tio. hoje, mais do que ontem, senti que deveria publicar essas palavras. ainda suspensa, são as palavras que também me acalentam um pouco mais todos os dias.

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