canção-falada

Crônica enviada para o V Concurso de Crônicas Ivone dos Santos, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas — SECULT/AL, em 2022.

laryssa andrade
4 min readApr 20, 2023

Fazia um tempo que eu não conseguia escrever. Na verdade, fazia um tempo que eu não conseguia sequer organizar caneta e papel, tamanha a desorganização que desordenava o que fui. Em cada uma das memórias que ousei transcrever ouvia um ruído do computador ou papel. Do escrito, o zumbido. Era um fio sem fim, um silêncio, como um incômodo sendo
cantado, uma melodia que eu identificava bem, mesmo que sem saber explicá-la.

Foram inúmeras as vezes que o movimento se repetiu. Pés descalços na cerâmica fria, cadeira arrastada, corpo sentado no móvel, mãos folheando cadernos e daí formou-se o fim. O fim era tudo o que eu tinha. Tudo. Abrir os olhos e ver o nada era tudo. A luz que saía da fresta da janela encontrando a cama se tornou o meu despertador. Os objetos que estão na mesa, a presença de fotografias e a ausência delas, afinal, cada detalhe conta um pouco sobre a presença de nós, e nesse caso de mim. Mas certo dia vivi o diferente: ouvi outra melodia.

Ao descer do ônibus percebi que o tempo nublado estava confortável — e que eu queria estar em casa e não ali. Andei alguns passos até localizar o banco de madeira que eu sempre sentava. Gosto dele por ficar de frente a uma vitrine que é atualizada quinzenalmente.

O movimento diante dela é contínuo. Pessoas passam, olham os produtos durante alguns segundos e seguem as suas vidas. Conto nos dedos da mão esquerda os dias em que vi alguém olhar produtos através do vidro e entrar na pequena loja. Em especial, as cores dos produtos da vitrine daquela semana eram rosa. Não um rosa suave, daqueles usados para decorar quartos de bebês, mas um rosa que ilumina o ambiente, tamanho o seu contraste e força — sim, força. Sentada, olhei os itens cuidadosamente, mesmo sem alguma pretensão de levá-los para casa e logo abri a mochila para me preparar para o resto do caminho que eu faria a pé depois dali.

Procurei os fones de ouvido, a caneta azul e o meu caderno, quando uma mulher sentou ao meu lado. Ela tinha cabelos brancos e uma risada gentil. “Meus filhos acham que não devo mais andar”, cochichou em minha direção. Olhei rapidamente para o seu rosto e sorri com os olhos, já que a máscara cobriu o meu sorriso de canto, e continuei a desamarrar
os nós infinitos dos meus fones. Segundos depois, ela completou a fala dizendo que costurava, gostava de caminhar e falou com carinho da juventude. O destaque ficou por conta do lamento e da lembrança, essa, que parecia ser embalada gentilmente por seus braços durante os gestos suaves que ela fazia com as mãos ao explicar o tempo passado. As pernas que a sustentavam há noventa e dois anos queriam descansar um pouco mais, e apesar das recusas por essa pausa, aquela senhora continuou a me contar as suas histórias. Me conformei com os nós dos fones de ouvido e resolvi deixá-los para outro momento.

Naquela altura, eu já tinha a impressão de que nos conhecíamos desde sempre. A roupa florida usada por ela lembrava as que a minha avó materna usava. O seu cabelo ondulado e volumoso na altura dos ombros, penteado para trás, moldava o seu rosto afirmando que o tempo, de fato, esteve passando a cada passo dado até ali. Foi quando ela começou a falar dos netos. O seu orgulho era repetir a fala de um deles afirmando que a avó
era a Fernanda Montenegro da família.

Nesse momento, então, ela fez um paralelo com o tempo: ser jovem é bom, você quase não sente dores nas pernas e pode tentar realizar o que deseja. Ela se referiu às experiências de vida dela, mas foi impossível não unir esses dizeres às minhas também.

Estranho dizer que ouvi-la com tantos anos à frente dos meus foi como ouvir a minha própria história, o meu próprio cantar.

Aquela personificação do tempo, um tempo mais próximo de um centenário do que os meus vinte e tantos, foi quem me mostrou algum cantar que eu precisava ouvir, igual como a sensação de quando fechamos os olhos para ouvir alguma canção e somos tomados pela sensação e surpresa do instante, pois os relatos daquela senhora trazida pelo acaso
conseguiram morar em alguma parte do meu coração, despertando um sentimento que me fez entender não somente sobre o tempo, mas também sobre a tempestade e a calma, mesmo que somente nos minutos da canção-falada que aquela senhora entoou.

Ainda bem que eu saí de casa naquele dia nublado.

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